quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O Antigo Testamento defende casos de estupro e ensina que uma mulher estuprada deve casar-se com o estuprador?

 O Antigo Testamento defende casos de estupro e ensina que uma mulher estuprada deve casar-se com o estuprador?


O texto de Deuteronômio 22.28–29 traz a seguinte regulamentação para a nação de Israel no Antigo Testamento:


“28 Se um homem se encontrar com uma moça sem compromisso de casamento e a violentar, e eles forem descobertos, 29 ele pagará ao pai da moça cinquenta peças de prata e terá que casar-se com a moça, pois a violentou. Jamais poderá divorciar-se dela.” (Deuteronômio 22.28–29, Nova Versão Internacional)


Esse texto realmente defende estupro e ensina que uma mulher estuprada deve casar-se com o estuprador e que, portanto, precisamos atualizar e ressignificar as Escrituras para que respondam às complexidades de nossa sociedade atual? Ou dizer isso é apenas mais um truque retórico usado como pretexto para corromper e relativizar a verdade revelada nas Escrituras segundo o espírito diabólico de nossos tempos?


Os tradutores da NVI, por exemplo, entenderam que esta passagem descreve um caso de estupro, pelo uso da expressão “violentar” a partir de dois verbos no texto original (que a Almeida Fiel simplesmente traduz como “e ‘pegar’ nela, e ‘se deitar’ com ela”). Mas os versículos imediatamente anteriores sugerem que este texto não descreve, pelo menos não necessariamente, um caso de estupro, mas, sim, uma relação consentida (imoral e perversa, sim, mas consentida). Vejamos a passagem então num contexto mais amplo (na tradução da ACF):


Primeiro caso:

“25 E se algum homem no campo achar uma moça desposada, e o homem a forçar, e se deitar com ela, então morrerá só o homem que se deitou com ela; 26 Porém à moça não farás nada. A moça não tem culpa de morte; porque, como o homem que se levanta contra o seu próximo, e lhe tira a vida, assim é este caso. 27 Pois a achou no campo; a moça desposada gritou, e não houve quem a livrasse.


Segundo caso:

28 Quando um homem achar uma moça virgem, que não for desposada, e pegar nela, e se deitar com ela, e forem apanhados, 29 Então o homem que se deitou com ela dará ao pai da moça cinqüenta siclos de prata; e porquanto a humilhou, lhe será por mulher; não a poderá despedir em todos os seus dias.”


Notemos então o seguinte:


(1) Os versículos 25 a 27 de fato já legislam sobre um caso explícito de estupro. Inclusive, a pena para o estuprador é nada menos que a morte. Então, por que o texto bíblico trataria novamente sobre estupro nos versículos 28–29, e com punições radicalmente diferentes? Faria algum sentido, mesmo nos dias do Antigo Testamento, que um homem que estupra uma mulher casada seja punido com morte enquanto um homem que estupra uma virgem solteira deva simplesmente pagar o dote pela mulher e casar-se com ela? Não faria, porque o segundo caso é radicalmente diferente do primeiro.


(2) De fato, o primeiro caso trata explicitamente de estupro, enquanto o segundo caso trata possivelmente de uma relação consentida. No primeiro caso, “morrerá só o” estuprador, e a mulher é explicitamente reconhecida como uma vítima que “não tem culpa”, e que inclusive “gritou” por ajuda. Já o segundo caso descreve uma situação em que ambos são “apanhados”, não havendo qualquer referência à mulher como uma vítima, ou como quem não teve culpa (inclusive, sequer há uma indicação de quando e como os dois foram “apanhados”--uma testemunha viu? houve arrependimento e confissão? a mulher descobriu que estava grávida e então confessaram?).


(3) Na expressão “a forçar, e se deitar com ela” no primeiro caso, os verbos na língua original são “chazaq” e “shakab”, respectivamente. No segundo caso, a expressão “pegar nela, e se deitar com ela” traduz os verbos “taphas” e “shakab”. Reparemos que em ambos os casos, o verbo traduzido como “se deitar” é o mesmo verbo “shakab”, que se refere simplesmente ao ato sexual (seja forçado, como no primeiro caso, ou consensual, como em Levítico 15.18, por exemplo). No primeiro caso, o uso do verbo “chazaq” em conjunto com o verbo “shakab” indica que o ato sexual for forçado, como também é o caso, por exemplo, em Gênesis 34.2, onde Siquém estupra Diná, e em 2 Samuel 13:11, onde Amnom estupra Tamar. Se no segundo caso o autor do texto quisesse descrever um caso de estupro, teria naturalmente utilizado o mesmo verbo, “chazaq”, mas utiliza o verbo “taphas” (pegar, agarrar), nunca utilizado para descrever casos de estupro em outras passagens do Antigo Testamento.


(4) O sentido do segundo caso, portanto, é de uma relação sexual consentida. Reparemos, por exemplo, no texto paralelo de Êxodo 22.16, que diz que “se alguém enganar/seduzir/persuadir alguma virgem, que não for desposada, e se deitar com ela, certamente a dotará e tomará por sua mulher”. Ainda assim, o segundo caso descreve uma imoralidade, um ato de fornicação, e o homem que desonrou a mulher, segundo as leis vigentes na nação de Israel no Antigo Testamento, não podia simplesmente abandoná-la à sua própria vergonha, mas tinha obrigação moral de cuidar dela como sua esposa.


Não há em Deuteronômio 22:28–29, portanto, qualquer apologia ao estupro, e muito menos obrigação de uma mulher estuprada casar-se com o estuprador. Evidentemente, ambos os casos tratam de legislação para a nação de Israel no Antigo Testamento e não advogam, necessariamente, que debaixo da Nova Aliança os cristãos devam seguir exatamente as mesmas prescrições. Mas os princípios morais no texto, explícitos ou adjacentes, são claros, universais e imutáveis. Nada no texto é um absurdo ou um escândalo para os leitores modernos. Nenhum princípio moral precisa ser atualizado ou ressignificado para que se entenda e se aplique o texto para os nossos dias. Basta apenas um pouco de boa vontade e de boa exegese.

Fabiano Prado Lima

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